RUTE

Rafael Sá
5 min readAug 1, 2024

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A divisão cristã do canon às vezes deixa a desejar não apenas na tradução, mas também na organização. Rute é um claro exemplo disso. Na tradição judaica, esse livro fica entre os chamados "escritos", que contêm a maioria dos livros poéticos, nesse caso, ao lado dos Salmos e dos Provérbios. É uma novela, uma exímia novela.

E como bom noveleiro, imagino a sagacidade de um autor que precisava justificar a aparição de um rei tão amado como Davi dentro de um contexto completamente miscigenado. As linhagens reais, em suas bobas medições, requerem pureza familiar. E, como sabemos, não existe nenhum traço disso nas genealogias hebraicas.

O ponto é que Rute é um elo entre um antigo sistema do primitivo povo semita e a construção de um ideário quase que nacionalista, com símbolos, heróis, mártires e, principalmente, um rei. E, para isso, a história se passa nos tempos dos Juízes, conectando-se à ancestral de Davi e à monarquia de Israel.

Rute era uma sobrevivente, da vida e da morte. Nos caminhos que se aproximaram dela, temos desde estar em um lugar de completa desproteção da mulher, uma vez que se passa no período dos Juízes, onde cada um fazia o que queria, e também de uma cicatriz que um dia atinge todos: o luto.

Digo, não apenas por ser um recém-viúvo, e em inúmeras vezes essa ser uma carga tão pesada que não acho paralelo na minha pregressa vida, mas também por perceber que a viuvez é sintoma da vida que aparece em qualquer grande perda.

O lugar do viúvo não é de alguém que rompe um relacionamento; nisso já temos palavra suficiente, chama-se divórcio. Ser viúvo vai certamente além de uma separação; é uma espécie de poda da alma, sobre a qual circunda um grande vazio.

Lembro da primeira vez que fiz a leitura de Vidas Secas; foi a segunda literatura clássica que tive acesso. Antes disso, tinha lido apenas escritos religiosos e Os Miseráveis, de Victor Hugo, obras que fizeram a cama do estilo literário que me acompanha até hoje.

Diante da secura das páginas de Graciliano Ramos, estava a minha própria vida seca, já que, como nordestino e do médio sertão, sabia dos dilemas que as famílias daqui sofrem. Não apenas da falta da água, que minha região até tem em boa quantidade, mas dos enredos crus que a vida daqui nos oferece.

De todas as cenas, foi a da morte da Baleia, cachorrinha querida, que me levou a quebrar a secura da minha face com algumas lágrimas. Provei ali o gosto do luto e participei da viuvez daquela família. Em algum instante, senti a comoção que o luto traz sobre o coração de quem ama, quando a estrutura social, psíquica e física se rompem, e surge o que ainda não existia e nem existirá, pois é um vazio, um vazio do gozo.

Em Rute, como nos livros poéticos da Bíblia, o casamento é o assunto que costura as partes, uma vez que em uma estrutura tribal e ainda monárquica, o matrimônio vai se tornando o núcleo da poesia. Em nossa sociedade isso não faz mais quase nenhum sentido, nem mesmo no amor romântico, mas ali era, além de tudo, uma questão de sobrevivência.

Rute, assim como Fabiano e sua família em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, encontra-se em um ambiente hostil, onde as adversidades da vida e as normas sociais se erguem como barreiras implacáveis. Fabiano e sua família enfrentam a aridez do sertão nordestino, uma metáfora poderosa para a dureza da existência e a luta incessante pela sobrevivência.

Ambas as narrativas retratam personagens que, apesar de suas origens humildes e das condições adversas, demonstram uma dureza notável. Rute, uma viúva moabita, se aventura a deixar seu país e segue sua sogra Noemi para Israel, uma terra desconhecida e potencialmente inóspita. Além de tudo, a aridez do seu coração, causada por tão grande perda.

A viuvez de Rute é um ponto central de sua narrativa, refletindo uma condição de vulnerabilidade que exige uma força interior extraordinária. Nesse sentido, Rute espelha a realidade de muitas pessoas que, após a perda de um ente querido, precisam encontrar novos caminhos e reconstruir suas vidas em meio ao desconhecido.

A obrigação de Rute em seguir em frente, mesmo diante das adversidades, ressoa profundamente com a experiência de quem enfrenta a viuvez na vida real, buscando nas câmaras do coração uma forma de seguir, ainda que para uma vida completamente nova.

Enquanto Graciliano Ramos usa a aridez do sertão para explorar a degradação humana e a resistência, o autor de Rute utiliza a fuga da fome para falar sobre fidelidade e a coragem da protagonista para subverter as expectativas sociais e religiosas de sua época. Rute, como Fabiano, é uma figura de resistência, uma personagem que se recusa a ser definida por sua origem ou por suas circunstâncias.

Fabiano e Rute, em suas lutas incessantes contra a miséria, nos mostram que a dignidade humana pode florescer mesmo nos solos mais áridos. Mesmo nos terrenos mais duros e impenetráveis, a boa semente floresce depois do arado.

Gosto de lembrar que o livro de Rute é bucólico, do campo. É o livro lido em uma festa que é comum a judeus e cristãos, no Shavuot ou Pentecostes. Uma festa da colheita, que seria o dia que a Torá teria sido entregue, como fruto da relação entre homem e Deus. Ou mesmo, no dia que o Espírito Santo desceu sobre a igreja.

Judeus olham para estas páginas com a lembrança de que é preciso sofrer para entender a lei, de acordo com os antigos rabinos, assim como Rute por meio desse sofrimento e pobreza teria sido a primeira pessoa convertida ao judaísmo.

Eu já olho para estas páginas com a perspectiva que o gozo salva a vida seca, e assumo a polissemia disso, seja pelo amor erótico que o enlutado pode receber de volta, ou mesmo pela reinvenção da paixão e do desejo.

Assim, Rute e Vidas Secas se unem em uma narrativa universal sobre a condição humana, a luta pela sobrevivência e a busca por um lugar de pertencimento. Ambas as histórias nos ensinam que, independentemente das adversidades, continuar o caminho e permanecer nele é por onde enlutados, viúvos, retirantes, ou mesmo apaixonados, desencontram-se e se reencontram com a vida.

Rafael de Sá

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Rafael Sá

O que sou? Uma casca sobre a qual repousa um nome. Um nome que unifica uma pequena narrativa.