O Dia: A Unidade de Tempo em Que a Vida Se Revela

Rafael Sá
3 min readJun 23, 2024

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O dia é a unidade de tempo em que a memória biológica, psicológica e espiritual se encontram, seja para comungar entre si, seja para se dissociar totalmente. Existem, de fato, dias bons e dias maus, como Jesus nos ensinou: cada dia reserva sua cota de maldade. Os dias nos fazem mal, pois são a medida que anuncia nossa própria brevidade. Ensaiamos, por assim dizer, a expectativa da nossa curta vida, seja pelo nascer na aurora, o despertar claro do sol ao meio-dia, ou ainda a simulação da nossa própria morte no anoitecer. Somos a única espécie que ensaia diariamente a temerosa expectativa do fim e, por esse mesmo motivo, temos a tendência de não dar atenção a isso. É uma ferida da própria humanidade, pois somos os únicos que dão significado ao processo chamado vida.

A modernidade, no entanto, atrapalhou nossa dança, enchendo de luzes os céus noturnos. Nossos olhos ficam acessos e parece que madrugamos em busca de um dia eterno, que dure mais de vinte e quatro horas, ou ainda que o próprio dia não acabe. Mas ele acaba. É justamente na artificialidade desse improviso de eternidade que residem nossas doenças. O impacto da depressão surge do desespero de que o dia nunca passe, mas que o outro já esteja dentro de nós. Avançamos como frangos em granjas, incapazes de morrer na noite, engordando ansiosos para o nosso abate. Perdemos a vida ao perder o dia.

O existencialismo já nos ensinou que o presente, que prefiro enxergar como dia, é a unidade da decisão e da responsabilidade. Aprender a viver o processo é permitir-se saber que o crepúsculo chega, seja para quem teve um dia enfadonho sob o sol, seja para o coach de internet que passou o dia enganando pessoas. O tempo não só passa, ele perpassa, invade o centro das nossas decisões e motivações. E é nesse final de dia, já crepuscular, que me volto para as memórias dos meus dias, que talvez, dispensando as futilidades, pudessem caber em um único.

Assim como caminhamos em volta do arado, é preciso definir o peso do cabresto, que os antigos traduziam como jugo. Nas costas de Atlas cabia o peso do mundo, Sísifo rolava uma pedra, e nós suportamos o peso da existência, carregando muitas vezes um bloco de anotações, como esse que vejo na minha frente, que carrega silenciosamente o peso do dia, da vida e da esperança. Esse peso tem se tornado mais leve à medida que me sinto ator da minha própria expectativa de vida, simulando com gratidão e ensaiando para o final dos meus ciclos, da grande novela na qual fui lançado. Quem sabe, no fim do dia, me encontre com alguém que se tornou ancião de dias, tal qual aquele que aprendeu a contar os seus próprios dias.

Na era da modernidade, onde luzes artificiais prolongam nossos dias, nos vemos em um estado de constante vigília, incapazes de descansar verdadeiramente. Esta artificialidade é o alicerce de nossas doenças, pois ao tentar perpetuar um dia eterno, perdemos a naturalidade do ciclo de vida e morte. A ansiedade e a depressão se manifestam na tentativa desesperada de prolongar o dia indefinidamente, enquanto a chegada do próximo já nos assombra.

A sabedoria reside em aceitar o crepúsculo, literal ou metaforicamente, como parte integrante da vida, encontrando paz e significado na jornada diária. Ao tornarmo-nos conscientes de nossa própria finitude, aprendemos a valorizar cada dia e encontrar propósito nas pequenas coisas, tornando mais leve o fardo da existência.

Em um mundo que busca a perpetuidade, que fiquemos atentos para não perdermos o valor do presente. Que possamos, a cada dia, ensaiar a dança da vida com gratidão e respeito, conscientes de que o crepúsculo sempre chega, trazendo consigo a oportunidade de reflexão e renovação para o dia seguinte.

Rafael de Sá

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Rafael Sá

O que sou? Uma casca sobre a qual repousa um nome. Um nome que unifica uma pequena narrativa.