Números

Rafael Sá
3 min readJul 9, 2024

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Já ouvi tantas vezes que o "tradutor é um traidor" . Mas, se tratando do livro de Números, eu chamaria de "criminoso" quem trocou o título original por esse. Trocar "No deserto" por "Números" é, antes de tudo, uma infâmia. Como alguém poderia transformar uma fina poesia genealógica em um livro de contabilidade? Trocar o nome desse livro não apenas muda sua capa, mas também seu conteúdo. Ao escolher falar sobre o deserto em vez de números, encontramos um lugar comum de toda a humanidade.

Mas não foi a primeira vez que fui enganado nesse tema.

Há algum tempo, um amigo me recomendou um filme de caráter experimental, preto e branco, e com uma trilha sonora extremamente irritante. O filme era "Pi", de Darren Aronofsky, que em nada tem a ver com o conhecido filme do tigre no barquinho. A obra sobre a qual me debrucei é um filme extremamente visceral, produzido no bojo da vivência na existência. Embora à primeira vista pareça ser apenas mais um filme sobre números, na verdade é uma exploração profunda do entendimento da vida solitária.

A trama segue Maximillian Cohen, um matemático recluso obcecado por encontrar padrões numéricos que ele acredita estarem presentes em todos os aspectos do universo. À medida que se aprofunda em sua busca, Max se isola cada vez mais do mundo exterior, mergulhando em um estado de paranoia e alucinação, mas também de intensa compreensão do significado que é buscar sua própria cura. O filme não é apenas uma reflexão sobre matemática e caos, mas uma intensa jornada pela mente de um homem solitário, lutando para encontrar sentido e conexão em meio à sua busca.

No final das contas, as duas histórias, seja a bíblica, seja a cinematográfica, seguem de fato a mesma obsessão. Uma tentativa de encontrar, no meio do deserto, uma forma de se manter vivo.

Seja no desconforto pesado da vida moderna, seja na coletividade nômade e escassa da vida no deserto. O fio condutor da experiência humana com o divino sempre passa pela sombra da noite, pela estranha ilusão de se sentir pertencente a um grupo ou teoria maior.

No livro do deserto encontramos como chave a bênção bíblica que mais me chama a atenção, a bênção do sacerdote, cuja beleza me força a citar em sua completude:

"O Senhor te abençoe e te guarde;
O Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti, e tenha misericórdia de ti;
O Senhor sobre ti levante o seu rosto e te dê a paz."

Um Deus para solitários: órfãos, viúvos, nômades, poetas, marginalizados, artistas e depressivos. Um Deus que não oculta sua face infértil, mas que ao mesmo tempo, também não oculta seu entendimento de que quem vive no deserto precisa de bênção e proteção, de luz e misericórdia, de olho no olho, mas principalmente de paz.

A troca de título e de perspectiva muda não apenas a forma como entendemos a obra, mas também o que esperamos dela. O "deserto" nos lembra das dificuldades e dos desafios da vida, enquanto "números" nos sugere algo metódico e impessoal. Contudo, a essência dessas histórias é a mesma: a busca por sentido e sobrevivência em um ambiente caótico e desafiador.

Rafael de Sá

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Rafael Sá

O que sou? Uma casca sobre a qual repousa um nome. Um nome que unifica uma pequena narrativa.