Levítico

Rafael Sá
4 min readJul 6, 2024

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As roupas, como a moda, são a primeira e mais oculta manifestação da intenção de se criar um invólucro para o sagrado. A Bíblia, em sua tentativa de comunicar a origem da consciência moral humana, usou de artifício a história de um casal primordial que passou por todo o processo de evolução, desde a apreensão do próprio corpo, depois do corpo do outro, até finalmente entender a manifestação de um corpo divino, que em suma quer dizer, do corpo humano em transcendência final.

Nesse processo, o casamento tinha uma função de cooperação para a preservação daquilo que se constituía em unidade, ou seja, o corpo como a unificação de partes opostas, sejam elas da natureza ou de um si mesmo. Para isso, era primordial uma apreensão do corpo moral, que se manifesta na forma primitiva como o proibido.

E assim, vai se criando uma vontade ascendente pela moral. A saber, pelo conhecimento do bem e do mal, a humanidade se torna uma com Deus. Para isso, a serpente no paraíso é como o fogo que intui a consciência. Ao instigar Eva a comer do fruto proibido, a serpente acende a chama do questionamento e da busca por entendimento, representando um passo crucial na evolução da consciência humana.

Mas, apesar de tudo, o plano falha na medida em que a consciência do proibido revela o sagrado, que antes estava oculto, ali no mais rudimentar e precioso lugar: no corpo humano. A percepção da nudez troca o objeto da proibição. E as roupas aqui são a primeira tentativa de construir um templo, de devolver à sacramentalidade aquilo que perdeu seu valor. Em suma, aquilo que era comum passou a ser proibido e o que era proibido passou a ser comum. E as vestimentas atuam como o desejo de envolver aquilo que agora é visto como sujo, profano.

A troca dessa polaridade criou, talvez, a maior ferida da consciência humana. Hoje devoramos todas as árvores e cobrimos os corpos com uma assepsia hipócrita. O que antes era uma expressão natural da humanidade tornou-se um símbolo de vergonha e ocultação. E assim, nas primeiras roupas que a humanidade teve, passamos a costurar projetos e intenções que, no fim, só querem uma receita para nos aproximarmos do sagrado original.

O livro de Levítico tem uma intenção parecida. Ali estão presentes longas descrições de como se portar para parecer agradável a Deus de novo. É um desdobramento das primeiras roupas, uma tentativa inglória, como a história demonstrou. As regras meticulosas sobre sacrifícios, pureza e conduta visam restaurar uma conexão perdida com o divino. Mas apesar disso, eu poderia passar dias falando de como essas coisas deixaram de fazer sentido depois da chegada do Nazareno, prefiro tentar um outro caminho.

Escolho, portanto, o caminho da desmitologização, o que há por trás do que as profanas letras escondem, o que há por trás da batina arrumada e bem passada do padre Amaro na famosa obra de Eça de Queirós, assim como o que há por trás da estola de Arão e de seus filhos?

O terceiro livro da Torah, na tradição judaica, herda, como os outros, as suas primeiras palavras, e em tradução livre seria: "Ele chamou". E por trás do símbolo está um chamado, não de construção ou reconstrução de uma religião, tal qual os ditames de Moisés, mas, acho eu, que um chamado para o corpo, que Jesus o fez em apenas três dias, diante do infortúnio da morte.

Corpo como templo é, em alguma medida, obra acabada e ainda por acabar. A habitação está pronta, mas é preciso uma ocupação divina, como no chamado do livro, "sejam santos", ou mesmo na minha intromissão, "sejam belos". O corpo é a morada do sagrado, do fôlego centelha de Deus. Essa noção de corpo como templo remete à ideia de que nossa existência física é uma expressão direta do divino, e devemos cuidar dela com a mesma reverência que teríamos por um espaço sagrado.

Assim como nada salta mais aos meus olhos nesse livro que as instruções particulares aos mestres artesãos, a beleza é o que sobra dos escombros da religião. É o belo, e talvez o lúdico, que nos leva para a verdadeira santidade. É preciso um pouco de imaginação para entregar e encher de vida um corpo. A chamada nova aliança de Jesus promete transformar cada um de nós em artesãos levitas, criando um novo corpo que se ajusta com outros tantos nessa união primaz do amor divino. Essa transformação implica uma renovação não apenas espiritual, mas também estética e moral, onde cada indivíduo se torna co-criador de uma realidade mais bela e sagrada.

A busca pelo sagrado através do belo e do lúdico representa uma mudança de paradigma. Em vez de seguir cegamente regras e rituais, somos convidados a participar ativamente da criação de um mundo que reflete a divindade em sua essência. É um chamado para reconhecer a beleza inerente na vida cotidiana e para viver de maneira que cada ação se torne um ato de adoração.

Rafael de Sá

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Rafael Sá

O que sou? Uma casca sobre a qual repousa um nome. Um nome que unifica uma pequena narrativa.