Nos abismos do inconsciente, onde as sombras da mente humana se entrelaçam, reside uma força primordial que molda nossas ações. Este reino oculto, repleto de medos e frustrações, estabelece uma barreira entre o que deve emergir à luz e o que deve permanecer nas trevas.
Freud, um dia, resolveu que poderia entender a imensidão da psiquê humana observando tão somente as histórias que a coletividade criou, especialmente o gênero da tragédia, para conceber o drama individual, como se da catarse pudesse extrair algum antídoto, algum pequeno fragmento de cura, para o sujeito.
Penso eu que ele não estava de todo errado. Como dito anteriormente em Deuteronômio, a narrativa que contamos de nós mesmos pode, mediante o sentimento de veracidade, se tornar o motor de uma eternização da consciência. E posso deduzir que, das tragédias, também é possível espremer o veneno da dor, tratá-lo e injetá-lo nas veias de um sofredor qualquer, como eu ou qualquer outro.
O livro de Juízes se desvela como tragédia, não ao modo grego, mas ao modo judaico, tragédia como a de Jó, mas sem um redentor no final. Um mundo imerso no abismo da liberdade avassaladora, onde qualquer um faz o que quer, sem trava alguma do que Freud chamou de superego. Os heróis aqui são soberbos, assassinos, preguiçosos e cruéis.
Esse livro está situado como expansão do que seria o mundo sem a lei de Deus. Não é um compêndio de leis ou uma coletânea de princípios morais; é um tratado sobre a liberdade observada através da lente do pessimismo extremo.
A Torá e o livro de Josué sugerem uma purificação moral, um caminho de retidão que os judeus devem seguir. Em Juízes, essa ordem é completamente desfeita. O autor nos mostra que, ao rejeitar a lei divina, os judeus não apenas se desviam, mas muitas vezes se afundam em uma decadência moral pior do que a dos cananeus que deveriam substituir.
Juízes é uma obra para aqueles que suportam a verdade nua e crua. O que encontramos aqui é uma sociedade à beira do abismo, onde a espiritualidade coletiva se dissolve em baderna absoluta. "Naqueles dias, não havia rei em Israel; cada um fazia o que parecia certo aos seus próprios olhos" – essa frase ecoa como um refrão sombrio, ilustrando a falência moral e social.
A leitura de Juízes me lembra um clássico da tragédia universal, essa mais próxima das nossas próprias tragédias, Macbeth. Se em Juízes o drama da vida sem leis leva ao caos social, em Macbeth é a suspensão da consciência individual que consome os seus personagens. Lady Macbeth vai se entregando à loucura da vida que escolheu pelo regicídio. A morte de um rei, apesar de legitimar o caminho sombrio da família Macbeth, também os envolve em uma trama que assusta a psiquê. Macbeth, consumido pela ambição e pelo desespero, vê a desintegração de sua sanidade e a ruína inevitável de seu reino.
E aqui estou eu, olhando o meu próprio caminho, para constatar os emaranhados que fabriquei conforme mantinha a lei social e negava, por tantas vezes, a lei do espírito. E quando falo isso, digo da experiência de me afastar do lugar doce da entrega a Deus. Tanto somos levados a questionar a amorosidade da lei, pois, como cristãos, criamos uma ojeriza aos mandamentos. E, apesar de isto ser saudável à medida que enfatizamos a graça, é patológico quando negamos a importância da unidade causada pelo respeito ao próximo.
Jesus nos ensina que toda a lei poderia ser reduzida a uma compreensão do amor como chave hermenêutica da vida. Que as conexões afetivas, assim como a gravidade, seguem um padrão; elas são gerenciadas pelo mandamento de Deus. Um lugar mais profundo que o bloqueio do superego, um bloqueio que não inibe a autoridade do humano frente às suas decisões, mas o intui a lugares seguros, que são acima de tudo amorosos.
O remédio para a cura do projeto nefasto do livro de Juízes é o amor, ao próximo e a Deus. Em personagens como Sansão, que fazem questão de quebrar todos os pactos possíveis da sua relação com Deus, ou como Jefté, que não levou a cabo a vida de qualquer próximo, mas do próximo mais próximo, matando sua própria filha.
Onde existem juízes, não é possível amar. Aprendi com o evangelho nas primeiras linhas, mas aprendi também a cuidar do meu próprio juízo pessoal, da imagem do meu espelho, para que o próximo não veja o amor que posso lhe oferecer de forma distorcida, mas pura. Entendo, da minha individualidade para todos os outros, que é possível, mediante o amor, transcender para todas as infinitas vidas.
Ao contemplar essa transição do caos à ordem, vejo um reflexo do meu próprio percurso espiritual. A lei de Deus não é uma mera lista de proibições, mas um guia amoroso que nos direciona a um caminho de integridade e compaixão. Assim como os personagens de Juízes sofrem as consequências de suas ações sem restrições, também nós enfrentamos o vazio e a destruição quando nos afastamos da essência divina que nos une.
Freud e os trágicos nos oferecem uma compreensão das profundezas do sofrimento humano, mas é na mensagem de amor e redenção que encontramos a verdadeira cura. O amor que Jesus prega não é apenas um sentimento, mas uma força transformadora que nos eleva acima de nossas fraquezas e nos conecta a algo maior que nós mesmos.
Portanto, ao refletir sobre Juízes e a minha própria jornada, reconheço a importância de abraçar a lei do espírito e permitir que o amor divino guie cada passo. Somente assim podemos superar os abismos do inconsciente e viver em harmonia com Deus, conosco mesmos e com os outros.
Rafael de Sá