JOSUÉ

Rafael Sá
4 min readJul 16, 2024

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Os heróis personificam uma forma perfeita da nossa ética, embora, na maioria das vezes, representem apenas um ideal estético. Desde cedo, aprendemos o que a sociedade requer de nós, moldando estereótipos que se fundem com nosso eu fundamental — a isso chamamos de processo de socialização. Nesse percurso, são apresentados os tipos ideais.

Criamos heróis em qualquer época, seja no ideal grego, que nos ensinava a temer acima de tudo os deuses e a respeitar o caminho que eles teriam traçado para nós, ou na modernidade, onde a magia perde o seu gosto e temos na constelação dos nossos redentores figuras como o bilionário Bruce Wayne, nos ensinando que fora do capitalismo não existe salvação.

Dentro desses, encontramos a figura de Josué. Josué é o típico exemplo de liderança na Bíblia e, provavelmente, na literatura universal, não temos exemplos melhores de liderança que os dos antigos hebreus. Falo isso não pela superioridade moral, mas pelo exato oposto, por sua característica ímpar: são tratados não apenas como homens falhos, mas pecadores.

E por assim dizer, pecado, como eu entendo, é a tentativa vã de perfeição espiritual, que brota dos lugares onde somos frustrados pelos nossos desejos. Os heróis bíblicos são assim: em determinada altura, sua escolha e chamado divino caem sobre suas cabeças como algo que parece mais uma maldição do que uma bênção, e são forçados a uma angústia que os obriga a escolher pela vida íntegra, ou seja, inteira, que retira o sagrado da atitude e coloca no coração.

Preferi pensar nesse livro diante de um clássico absoluto da literatura universal. Confesso que considerei a possibilidade de abordar esse texto dentro de um heroísmo coletivo, como na grande obra "Os Sertões", ou do aspecto tradicional e mágico do fantástico "Cem Anos de Solidão". Mas, em vez disso, ousei pensar esse livro e a liderança bíblica sob o papel do humor. A escolha não poderia ser diferente: "Dom Quixote".

Em "Dom Quixote", Miguel de Cervantes nos apresenta um personagem caricato e ridículo. Buscador de um ideal fantasioso, na maioria do tempo bobo e completamente maluco. Os sonhos de conquistador que luta contra moinhos de vento espelham uma tentativa humana de escolher suas conquistas pelos papéis que um dia lhe deram, ou que assumiram para si.

Mas apesar das ações do nosso personagem serem desastradas, ao que parece, sua mente resguarda um senso de realidade extraordinário. Quantos diálogos da conhecida amizade nos levam a entender o próprio mundo e, quem sabe também, a linguagem, como um local de conquista.

Em Josué não é diferente. O líder é procurado por Deus quando seu antecessor tinha acabado de morrer. Ele tinha diante de si um obstáculo quase intransponível; os amigos de Josué disseram que era impossível, mas ele mesmo enxergou moinhos de vento que poderiam ser destruídos pelo poder de Deus.

Um resquício de uma loucura conquistadora pairava sobre o herói, de cultivar o que a Bíblia chama de fé, um instinto de sobrevivência que desce do espírito para uma manifestação na consciência, um salto do escuro da alma, na completa incerteza da concretude da ação.

Os muros de Jericó, assim como os moinhos de Quixote, representam uma batalha contra o impossível. Josué, com uma fé que beira o delírio, marcha com seu exército ao redor das muralhas, acreditando que o som de suas trombetas será suficiente para derrubar pedras.

O texto, apesar de claramente ser uma tentativa de propaganda que enfatiza a obediência a Deus como forma de bênção, bem típica do que os estudiosos chamam de literatura deuteronômica, é resgatado na leitura cristã, quando retira o excessivo peso da lei e resgata, por meio da imaginação graciosa, a sua utilidade na formação do caráter, e aqui em específico, o caráter do líder.

A liderança de Josué, portanto, é a personificação da crença em algo além do tangível. Assim como Quixote, que se vê um cavaleiro mesmo quando todos à sua volta enxergam apenas um louco, Josué enxerga a mão de Deus onde os outros veem apenas rochas intransponíveis. Ambos, de certo modo, são exemplos patéticos, no sentido da condição humana e, ao mesmo tempo, sublimes: a busca incansável pelo ideal, mesmo quando ele parece estar além do alcance da razão.

E nesse contexto, são lançados para a realidade, ambos vivem no intercurso entre ficção e realidade, demonstrando que até mesmo para nós existe uma dificuldade de entender onde o sonho acaba. Josué, diante de uma terra idealizada, viu seus irmãos morrerem em batalhas indignas. Quixote travou tantas batalhas mentais quanto qualquer cristão passa, e, ao que me parece, é a realidade, com o perdão da repetição, mais real que há.

E é esse mundo, da razão absoluta, controlado pela ciência moderna, ao qual somos lançados como máquinas. Os fantasmas do medo, aos quais a religião usou tanto, foram vencidos; a ciência triunfou sobre todos eles. E, infelizmente, não ficamos melhores, pois perdemos a capacidade de transitar para a esperança quando perdemos a capacidade de sonhar.

Outra questão que me prende a essas duas obras é que os deuses do texto deixam os personagens à sua própria sorte para tomarem decisões de acordo com sua consciência. Seja Javé, seja Cervantes, os cavaleiros, seja o bíblico ou o literário, enfrentam o peso da decisão que precisam tomar todos os dias, encontrando, quem sabe, o equilíbrio entre as grandes forças que guiam os heróis.

E por pensar assim, fui percebendo quantas vezes agi dentro de um papel de salvador ético, tentando viver o sacrifício e desejo cristão, e como tudo isso é poeira diante da grande realidade oculta da vida, que somos encapsulados por uma senhora paciente e constante que chamamos de morte. É, em última instância, a ela que apresentaremos a nossa ficção, defendendo, assim como Cervantes, que não deveríamos morrer de tédio, mas de fé em algo criativamente mágico, que nos levasse às nossas terras prometidas, como heróis da nossa história.

Rafael de Sá

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Rafael Sá

O que sou? Uma casca sobre a qual repousa um nome. Um nome que unifica uma pequena narrativa.