Deuteronômio

Rafael Sá
3 min readJul 13, 2024

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Moisés, ao contemplar o horizonte da Terra Prometida do alto do Monte Nebo, sentiu o peso de uma vida dedicada a um propósito que, no entanto, lhe escaparia das mãos no último momento. Era uma visão agridoce, repleta da promessa que nunca se cumpriria plenamente para ele. Moisés, o líder incansável, o legislador, o guia do povo de Israel, estava destinado a descansar antes de cruzar o Jordão. Em suas últimas palavras, carregadas de sabedoria e tristeza, ele reafirmava a importância da obediência e da fé, ainda que seu próprio destino refletisse uma certa dose de injustiça e frustração. Moisés, nos moldes do provérbio moderno, nadou e morreu na praia.

Da mesma forma, Brás Cubas, em sua narrativa póstuma, reflete sobre uma vida de ambições e decepções. Do outro lado do véu da existência, ele se permite um olhar cínico e sarcástico sobre suas tentativas frustradas, especialmente a do famoso "emplastro Brás Cubas". Sua invenção, que prometia curar a melancolia e lhe garantir um lugar na história, nunca viu a luz do dia. Brás Cubas, assim como Moisés, confronta a ironia de um legado inacabado.

Por outro lado, ambas as frustrações perpetuaram-se na história, e apesar de não terem a glória da morada prometida, ou mesmo eterna, foi na escrita que eles se mantiveram. Às vezes, é a história que nos imortaliza, e o único que parece ter o segredo da vida eterna é o bom escritor. Tarefa essa bem executada, seja por Cubas ou por Moisés, que viveram às custas da autenticidade de narrarem sua mediocridade.

Em Deuteronômio, Moisés revisita suas conquistas e erros, reafirmando as leis que deveriam guiar Israel após sua partida. Ele compreende a frustração de não completar sua jornada, a angústia o persegue, mas como disse o começo do livro é preciso lançar sua palavra.

Brás Cubas, em contraste, relata sua vida com uma resignação crítica. Ele revisita suas memórias com um misto de desapego e gracejo, ciente de que seus feitos e fracassos fazem parte de uma comédia humana maior. O remédio que não desenvolveu torna-se símbolo de sua existência falível, uma reflexão amarga sobre as vaidades e esperanças humanas.

Esses dois relatos, separados por contextos e épocas tão distintos, convergem na exploração da finitude e da frustração. Moisés, o profeta cujo destino é moldado por um projeto maior, e Brás Cubas, o narrador desencantado de suas próprias desventuras, ambos nos convidam a refletir sobre o que deixamos para trás. Em suas palavras, encontramos a ecoar a eterna busca pelo sentido e a aceitação das nossas limitações.

Deus não escapa, como personagem, desse poder que o texto tem, ao se permitir parecer choroso, irritado e muitas vezes punitivo, ele também se torna personagem autêntico não só do livro, mas dá humanidade.

O título do livro em hebraico é "Debarim", algo que pode ser traduzido como "palavras". E no final, a existência é sobre isso mesmo. As palavras que montamos e amontoamos na vida. O convite desse livro é a uma escrita, ainda que imperfeita, da nossa condição humana.

E essa escrita, que para mim já foi tão dolorosa, agora acompanha uma procissão mais pacífica. Quando me reconheci autenticamente humano, debaixo do peso de um grande sofrimento, pude perceber que relatar meus descaminhos e acertos é a verdadeira palavra inspirada de Deus, soprando em minhas narinas, que volta como fôlego em cada uma das minhas decisões.

Esse texto, sim, termina com o convite do escritor, para uma inspiração mística e espiritual de cada um dos seus leitores, para que persigam as suas próximas palavras como as últimas palavras. Uma vez que não é o que é dito em uma vida que torna ela eterna, é como e na autoridade da autenticação que ela se forma.

Rafael de Sá

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Rafael Sá

O que sou? Uma casca sobre a qual repousa um nome. Um nome que unifica uma pequena narrativa.